Sob o sol do Qatar, trabalhadores migrantes expostos a escravidão e morte na construção da estrutura da Copa do Mundo da FIFA de 2022

Natália de Oliveira Ramos
6 min readAug 2, 2022

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Natália de Oliveira Ramos
(dos Países Baixos)

Uma estrutura faraônica foi construída para que o Qatar possa sediar a Copa do Mundo da FIFA de 2022. Quando foi anunciado como anfitrião do evento (em 2010), havia apenas um estádio esportivo no país.

Mais de uma década depois — e um investimento de 200 bilhões de dólares -, não só sete estádios climatizados passaram a fazer parte da arquitetura qatari, como também uma cidade, Lusail, projetada para a final da Copa. Além da construção de um aeroporto, rodovias, sistemas de transporte público, um porto e uma centena de hotéis de luxo.

A Copa jogou luz nas condições precárias de trabalho no Qatar, antes ofuscadas pela modernidade da capital Doha, cujo arranha-céus futuristas estão para o Qatar como a Torre Eiffel está para Paris/ Crédito: Pixabay

Um país pequeno (menor que o Sergipe), que faz fronteira com a Arábia Saudita, o Qatar possui o produto interno bruto (PIB) per capita número um do mundo, consequência de extensas reservas de gás natural.

Ainda assim, sua população de apenas 300 mil habitantes (na época) não poderia ter se preparado para a Copa do Mundo sozinha. A alternativa foi contratar mão-de-obra dos países mais pobres do mundo

Impulsionada pelo “boom” das obras para a Copa, a população atual do Qatar é de quase 2,9 milhões de pessoas, das quais 90% são estrangeiros..

Desde o início das obras relacionadas a Copa do Mundo, organizações internacionais que atuam pela defesa dos Direitos Humanos acusam a Fifa e o Qatar, dona e anfitrião do evento respectivamente, a submeterem imigrantes a trabalho análogo a escravidão — suborno, condições precárias de alojamento, ausência de direitos trabalhistas e humanos.

Para se ter uma ideia, durante a pandemia da Covid-19, o governo qatari proibiu a saída dos campos onde ficam os alojamentos. Com isso, milhares ficaram aglomerados em dormitórios com banheiros insalubres. Já as mulheres ficaram mais suscetíveis a abusos sexuais e violência doméstica.

Crédito: Reprodução Anistia Internacional

Também recai sobre a organização da Copa do Mundo a morte de ao menos 6,5 mil imigrantes desde o início das obras — uma média de 12 mortes por semana desde dezembro de 2010. A maioria das vítimas são sul-asiáticas: da Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka.

Uma investigação do jornal britânico Guardian revelou que é provável que o número de mortes esteja subnotificado, pois não há informações de países que enviam muitos trabalhadores, como Filipinas e Quênia, por exemplo. Óbitos ocorridos nos últimos meses de 2020 também não estão incluídos.

Sob o sol do Qatar

Entre os meses mais quentes do ano, os termômetros no Qatar marcam 35 graus já nas primeiras horas do dia. Pela tarde, o aumento da temperatura faz a sensação térmica passar de desconfortável para insuportável e, logo, insalubre.

Devido ao calor, a Copa do Mundo será realizada pela primeira vez em novembro, no inverno. Desde 1930, o evento acontece entre junho e julho, mas a ideia de manter a tradição foi tida como descabida — até mesmo pela Fifa.

Como resultado das mudanças climáticas, as temperaturas no Golfo estão aumentando duas vezes mais que a média global — com temperaturas chegando regularmente a 50°C.

No entanto, acima de 40°C o mecanismo natural do corpo começa a desintegrar, podendo causar mortes súbitas, explica o cardiologista nepalês, Professor Doutor Ratna Mani Gajurel.

O especialista acrescenta que mesmo indivíduos saudáveis sofrem estresse térmico e insolação. A exemplo do que aconteceu em setembro de 2019, quando o Qatar sediou a ‘World Athletics Championships’.

As corridas demonstraram que mesmo atletas de alta performance foram vencidos pelo calor extremo. Um atrás do outro foram colapsando, em uma competição à meia-noite.

A BBC Árabe produziu o documentário ‘Qatar: Killer Heat Cripples Workers’ (O calor mata os trabalhadores, em inglês) que aborda, sobretudo, doenças renais em obreiros imigrantes no Qatar.

Organizações de direitos humanos e sindicatos denunciaram trabalho forçado e outros abusos durante construção de estádios. / Crédito: Anistia Internacional

Segundo o especialista Rishi Kumar Kafle, do Centro Nacional de Nefrologia de Kathmandu, no Nepal, a exposição a altas temperaturas compromete o funcionamento dos rins.

A maioria dos imigrantes que retornam doente não tem condições financeiras para custear o tratamento, o que recai sobre o governo nepalês, um dos mais pobres do mundo.

Entre os ex-trabalhadores do Qatar que estão em hemodiálise no Nepal, Hen Bahandur Rana foi contratado para trabalhar em um navio e à BBC Árabe detalhou os abusos que sofreu.

“Não tinha oxigênio, mas eu não podia parar. Mesmo suado, eles não nos deixavam parar nem para beber água”, relembrou. Logo, os sintomas de insuficiência renal apareceram: “Eu tinha muita dor de cabeça, minha urina estava espumosa, mãos e pernas suando”, disse. Hen Bahandur assegurou que, ainda no Qatar, recebeu o diagnóstico de doença renal, mas nenhuma ajuda foi oferecida.

Hen Bahandur durante hemodiálise, procedimento através do qual uma máquina filtra e limpa o sangue, fazendo parte do trabalho que o rim doente não pode fazer. / Reprodução

Apesar das evidências de violação de direitos humanos, um representante do Ministério do Trabalho qatari, Mohammed al-Obaidly, enfatizou que providências serão tomadas caso conste no atestado de óbito que a morte ocorreu em decorrência do calor. “No fim das contas é a medicina [que conta]”, sentenciou.

Reparações

Recentemente, a Anistia Internacional instou a Fifa, Qatar e demais envolvidos na realização da Copa do Mundo a pagarem o equivalente a R$ 2 bilhões para indenizar imigrantes e suas famílias. O valor é o mesmo que será distribuído às 32 seleções participantes do torneio este ano.

A Anistia sugere que o dinheiro seja investido não apenas para compensar as vítimas, mas também em iniciativas para melhorar a proteção dos trabalhadores no futuro.

A exigência faz parte do relatório ‘Previsível e evitável: Por que Fifa e Qatar deveriam remediar abusos por trás da Copa do Mundo de 2022’.

Em um trecho, o documento esclarece que “de acordo com as leis internacionais dos direitos humanos, o Qatar tem obrigação de assegurar compensação para cada abuso cometido em seu território”.

Quanto à Fifa, a Anistia enfatiza que “[a responsabilização] está alinhada com o Guia de Princípios dos Negócios e Direitos Humanos da ONU”, referindo-se a lista de procedimentos que se esperam de entes corporativos, no qual a Federação Internacional de Futebol está incluída.

Estádio Thumama: Mais de 1 trilhão de reais foi investido nas obras para a Copa do Mundo no Qatar, incluindo 8 estádios com ar-condicionado.

Embora o Qatar afirme que a lei trabalhista (Kafala) tenha sido extinta em 2020, entidades que assinam o relatório dizem que ela continua em vigor em várias empreiteiras.

Isso significa que imigrantes continuam impossibilitados de mudar de emprego ou de deixar o país sem autorização de seus patrocinadores.

Sistema de Kafala: um ciclo de pobreza

O relatório Migrant Labour Recruitment to Qatar, realizado pela Universidade Hamad Bin Khalifa, em Doha, detalhou como a Kafala dava brecha para abusos que começavam já no país de origem, submetendo imigrantes a um ciclo de pobreza.

Uns venderam pedaços de terra, outros contraíram dívidas para pagar o suborno de recrutadores em troca da vaga de emprego. Depois, foram obrigados a quitar as dívidas de viagem e acomodação.

Mas sem acesso à justiça, com a proibição de sindicatos e falta de aplicação de leis trabalhistas, ficaram à mercê de recrutadores que atrasavam ou não pagavam seus salários, impossibilitando o pagamento da dívida e fomentando o trabalho forçado.

Apesar de que a Copa tenha voltado a atenção para o Qatar, há décadas os países do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) contam com migrantes para impulsionar suas economias, ao mesmo tempo em que abusam deles.

Estimativa mais recente da Organização Internacional do Trabalho sobre Migrantes Globais, do número total de 169 milhões de migrantes trabalhadores, os estados árabes abrigam pouco mais de 24 milhões ou 14,3%; a maioria são homens.

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Brazilian Journalist based in Spain/ Enthusiast of New Narratives about Latin America & Human Rights. Lived in Ireland and the Netherlands

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